A Pandemia do Coronavírus e todos os seus reflexos, principalmente na economia, trouxeram à tona mais uma vez a reflexão sobre os limites da LEI.

Frédéric Bastiat já fazia isso em 1850, mas parece que seu cenário foi o exato contexto atual. Por essa razão, não poderíamos deixar de analisar a lei por meio da sua esplêndida análise e interpretação, quando limita o papel da mesma ao combate à injustiça, devendo regulamentar tão somente a proteção de três pilares: i) liberdade; ii) vida e iii) propriedade. O economista e jornalista acreditava que tal regulamentação seria o bastante e o justo para toda uma sociedade, pois não é papel da lei tratar do comportamento humano, nas suas mais complexas e diferentes nuances.

Ocorre que não é isso o que acontece na maioria dos ordenamentos jurídicos. Estamos, cada vez mais, sendo moldados em uma escultura na qual o acabamento retira nossos direitos e o polimento, nossas liberdades. Portanto, impossível não aspirar à “lei” que Bastiat garantiria.

De um lado temos a ciência que trata sobre “o que é” a lei e de outro a filosofia que discorre sobre “como deveria ser” a lei. Sem tirarmos o pé do chão e analisando todo o contexto sobre a Pandemia, nos aventuramos no sonho, na utopia de como seria “a lei” se escrita pelos punhos de Bastiat.

Em tempos de Covid-19, diferentemente do cidadão-modelo tratado na narrativa de 1850, que acreditava que menos intervenção estatal significava mais justiça, o cidadão dos tempos atuais parece querer a proteção da lei para o seu negócio, para os seu clientes, para os seus filhos, para o seu município, para sua atividade econômica, para sua inércia, para a continuidade de seu trabalho, para seu fracasso, para seu sucesso… E isso se torna um ciclo vicioso. Mas e aí? E quando todos querem tudo? A lei além de tratar sobre tudo terá também que regulamentar sobre todos e todas as suas exceções? Desse modo, a lei não se ateria ao compromisso essencial do impedimento de injustiças. Isso novamente nos remete à lei de Bastiat.

Qual é o preço da nossa liberdade? E por que conferir à lei o poder de retirá-la? O homem não pode ser ao mesmo tempo livre e não ser! Historicamente os povos fazem um esforço sobrenatural em direção à liberdade real. Mas o que é a liberdade de fato senão a experiência de todas as pequenas liberdades? Liberdade econômica, liberdade política, liberdade social, liberdade de escolha enfim. Para Frédéric, a liberdade é a destruição de todos os despotismos, é a redução da lei à sua única atribuição racional, qual seja a de regularizar o direito individual de legítima defesa à vida, à propriedade e à liberdade. Enquanto alguns lutam por essa liberdade, outros tantos, se utilizando inclusive do poder, se perdem na ilusão de garantir a liberdade na LEI, ultra regulamentando-a, embaraçando-a, sufocando-a! Ledo engano!

Claro que às regulamentações sobre isolamento ou saúde, poderiam se inserir na proteção à vida e, portanto, justamente dentro da visão de Bastiat. Dentro de um contexto tão complexo, vale a análise das últimas decisões do STF no tema, especialmente aquela que insere textos na lei (lei em sentido amplo), como a decisão cautelar da ADIN 6363 do Ministro Lewandowski que aditou textos na MP n 936 e, portanto, “criou lei”!

No dia 01º de abril de 2020 entrou em vigor a Medida Provisória nº 936 que institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, dispondo sobre as medidas trabalhistas complementares para o enfrentamento do estado de calamidade pública de importância internacional decorrente do Coronavírus (Covid-19).

O Programa Emergencial visou à preservação do emprego e da a renda, à garantia da continuidade das atividades laborais/empresariais e à redução do impacto social, frente às consequências do estado de calamidade pública e de emergência de saúde pública em tempo de Coronavírus adotando, para tanto, as seguintes medidas: I – O pagamento de Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda (art. 3º, I, MP 936); II – A redução proporcional de jornada de trabalho e de salários  (art. 3º, II, MP 936) e III – A suspensão temporária do contrato de trabalho (art. 3º, III, MP 936). Acrescentou, ainda, no art. 11. § 4o que “Os acordos individuais de redução de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária do contrato de trabalho, pactuados nos termos desta Medida Provisória, deverão ser comunicados pelos empregadores ao respectivo sindicato laboral, no prazo de até dez dias corridos, contado da data de sua celebração”.

Desta forma a MP 936 apenas trouxe a necessidade de comunicação ao sindicatonão prevendo a necessidade de concordância do mesmo para a validação do acordo.

Ocorre que foi ajuizada ação para declarar inconstitucional  tais preceitos (ADIN 6363), pois supostamente seriam contrários à CF/88, uma vez que a Carta Magna traz que a redução salarial (art. 7o, VI) acompanhada de redução da jornada de trabalho (art. 7o, XIII), deverá ser respaldada em negociação coletiva a fim de manter a mesma relação valor/hora do trabalho.

E a decisão SUPERPODEROSA ao invés de se limitar à declaração de inconstitucionalidade ou não, acrescentou textos:

(…)

Por isso, cumpre dar um mínimo de efetividade à comunicação a ser feita ao sindicato laboral na negociação. E a melhor forma de fazê-lo, a meu sentir, consiste em interpretar o texto da Medida Provisória, aqui contestada, no sentido de que os “acordos individuais” somente se convalidarão, ou seja, apenas surtirão efeitos jurídicos plenos, após a manifestação dos sindicatos dos empregados. 

(…)

A decisão do Ministro acrescentou o aval do sindicato à condição de regularidade dos acordos individuais, o que não fazia parte do objeto da ação, acabando por legislar (em causa própria se pudéssemos classificar com cunho político tal aditamento) ou seja, criando lei como se essa faculdade estivesse em seu poder.

Tal decisão me parece refletir exatamente a “ideia de super-homem” postulada por Bastiat em relação aos legisladores: “Se as tendências naturais da humanidade são más o bastante para que se deva tirar sua liberdade, como é que as tendências dos organizadores são boas? Os Legisladores e seus agentes não fazem parte do gênero humano? Eles se acham feitos de um barro diferente do resto dos homens?[i] (…)” 

Se o Ministro acredita que a tendência natural do empregador é tão ruim a ponto de privar a efetividade da medida (e consequentemente a ideia da liberdade) e condicionar o acordo individual ao aval do sindicato, por que a tendência DELE inserindo essa condição seria tão boa? Ele não faz parte da humanidade? Ou ele é um super-homem? Ele também possui tendência que pode ser boa ou pode ser ruim. Mas assim decide por se achar dotado de dons sobre-humanos.

E por que ele o teria? Porque ao condicionar tais acordos ao aval dos sindicatos não está somente atrasando o efeito do remédio usado para estancar a sangria, mas também deixa notório como se utiliza do múnus público para interesses escusos. E aí entra o efeito da kriptonita. É quando ele se iguala à humanidade que ele se torna tão humano.

Não! Ele não tem superpoderes. Não é diferente de todos nós. Que possamos ser todos íntegros ao ponto de analisar essa medida sem olhar os pólos, o partido político e sim voltar nossos olhos para a relação de emprego que deverá ser mantida.

É para privar a liberdade? Não basta que a liberdade já esteja restrita? É mesmo necessário condicionar ao aval dos sindicatos? Não estamos aqui pensando no país como um todo através de uma medida de emergência? Situações desconformes poderão acontecer? Sim! E deverão ser rechaçadas na justiça do trabalho. Caso haja algum caso em que o empregador não siga a MP, naturalmente arcará com a consequência do seu erro, seja por execução fiscal em que a união cobrará o benefício recebido indevidamente ou seja em ação de reparação por danos materiais na justiça do trabalho.

Ainda não houve o juízo final. A ação ainda tramita, mas mais uma vez o bem vence o mal e a ideia de Super-Homem não se alastrou pelo Supremo. Nessa tarde do dia 17 de abril de 2020 por 7 votos a favor e 4 votos contrários a concessão da liminar tal decisão cai por terra e passa a vigorar integralmente a MP 936 com o texto original tal qual foi editado.

O Super herói azul de capa vermelha defendia a liberdade, o interesse de toda a humanidade. O sobre-humano do STF, além de não pensar no objetivo da MP, se incumbiu da auto intitulação de “super-homem” achando que a toga preta que legitima à sua assinatura faz às vezes do uniforme azul de capa vermelha, que concede ao herói poderes de superioridade aos meros mortais.

Não! Não precisamos de super-homens e nem de super leis, precisamos sim de ser mais humanos!

 


ANDREA CAMARGO, advogada empresarial, Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Especialista em Direito Empresarial pela FGV; Especialista em Processo Civil pela FDV; Pós-Graduada em Ciências Jurídicas pelo Diex/Ielf;

www.camargoecamargoadvogados.com.br

 


[i] Bastiat, Frédéric (2019). A Lei. São Paulo: LVM Editora. pp. 101 – 102.

 

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